Por Denise Moraes
Ao longo do desenvolvimento da sociedade, houve muito progresso em relação à educação e aos cuidados infantis.
Criar os filhos era, inicialmente, papel das mulheres, que em geral não possuíam formação acadêmica, contavam com os poucos recursos financeiros cedidos pelo marido e dependiam dos saberes populares para cuidar dos filhos adoecidos. A taxa de mortalidade infantil era alta, não havia incentivo ao ensino escolar e a educação era, principalmente, moral, baseada nos princípios paternos. Os demais aprendizados ocorriam de forma orgânica — pelas vivências nas brincadeiras e no contato com a natureza. As crianças cresciam brincando nos quintais e nas ruas, se embrenhavam no mato perto de casa, subiam em árvores, aprendiam a nadar no rio e voltavam para casa ao primeiro grito da mãe.
Então, a Revolução Industrial chegou — e, com ela, a necessidade de educar a população e cuidar da saúde dos futuros trabalhadores. O Estado passou a investir mais em saneamento básico, imunização e educação. As mulheres foram para o mercado de trabalho, e as crianças passaram a demandar novos cuidados — agora voltados à saúde e à formação escolar.
O Brasil estabeleceu a imunização compulsória contra a varíola em 1837 e, até hoje, é referência em vacinação infantil, com um calendário amplo, bem divulgado, e campanhas intensas. Quem não conhece o Zé Gotinha?
Quanto à educação infantil, sua história no Brasil começou no século XIX, por meio de instituições filantrópicas e assistenciais que buscavam apoiar famílias de baixa renda cujas mães precisavam trabalhar. A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o atendimento a crianças de zero a seis anos em creches e pré-escolas passou a ser dever do Estado.
Desde então, leis como a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) trouxeram avanços para a educação infantil, tanto no aspecto acadêmico quanto nas abordagens pedagógicas voltadas ao desenvolvimento integral da criança.
Mas qual é a qualidade dessa educação hoje, no sentido mais abrangente?
Nunca antes tantas crianças foram diagnosticadas com alergias e transtornos — nem medicadas tão precocemente. Sintomas de ansiedade e estresse já são observados nos primeiros anos de vida. A OMS, inclusive, considera que a atual geração de crianças pode ter uma expectativa de vida menor que a de seus pais.
Sim, as crianças estão adoecendo. E por quê?
É inegável que houve avanços em saneamento, saúde e acesso à educação. Mas, apesar disso, nunca estiveram tão trancadas.
Há anos, muitas crianças conhecem o mundo apenas pelas telas. As únicas atividades físicas acontecem na escola — se não houver dispensa médica — ou em centros esportivos especializados, quando recomendados por um pediatra.
Não se vê mais crianças nos quintais. Aliás, muitas nunca estiveram em um. Não conhecem pipa, nem tatu-bola. Correm das formigas. Subir em árvore virou perigo. Fruto direto do pé é “sujo”. Mato é ameaçador. Sol queima. Chuva adoece.
A infância está perdendo sua essência.
A criança deixou de ser infantil. Não explora mais, não conhece a natureza — e, por isso, não aprende com ela, tampouco se importa.
Estamos criando miniadultos altamente estimulados por telas, cheios de vontades comerciais e medos. Sedentários, tristes, sem personalidade. Com muita grife e pouca vivência. Muito fast-food e pouca nutrição. Muitos remédios e pouca saúde. Pouco tempo com os pais, muita carência. E os amigos? Só os da escola — ou os virtuais, cujos nomes e idades talvez nem sejam reais. As relações concretas foram perdidas.
Os consultórios estão cheios de pais preocupados, em busca de um diagnóstico, de um CID que explique o comportamento dos filhos. Enquanto isso, os parques viraram lugares para passear com o cachorro. Há uma corrida por explicações e tratamentos, mas pouco se ensina sobre limites em casa. Paga-se professora particular, e, se o resultado não aparece, a culpa é da escola. Tudo que acontece com a criança passou a ser responsabilidade dos outros — ou do código de um laudo.
Quando foi que os pais deixaram de cuidar de verdade?
Quando foi que aceitaram que influenciadores, muitas vezes sem filhos, ditassem a educação dentro de casa?
Quando esqueceram que criança precisa de sol, natureza e amigos reais?
Por que o Estado se preocupou tanto com o currículo e cortou as árvores das escolas? Por que tirou o tanque de areia e colocou tatame?
Quando foi que o mato virou perigo — e a tela, proteção?
Quando o médico tirou o chá e prescreveu o remédio?
Talvez o “quando” nem importe mais. Mas é certo que precisamos reparar.
É urgente voltar a brincar com as crianças. Deixar que tomem sol e chuva, correr no mato, pular na poça, se sujar e rir. Incentivar a convivência com amigos, o tempo livre, o pé no chão.
Sabe o que você tem feito com seu pet? Pois bem, faça com seus filhos.
Denise Moraes é psicanalista, terapeuta e autora do livro O que resta. Nasceu em Itatiba (SP) e desde cedo aprendeu a conversar com as palavras. Carrega em sua escuta o compromisso com todas as formas de existência — humanas ou não. Escreve movida pelo respeito à vida e pela urgência de um mundo mais saudável e inteiro.